Sob o céu sem estrelas de Santa Maria
Por Lipedal || 21:30:00 || 3 de ago. de 2006
Olá, Doutor. Já fazia um tempo que eu não vinha no seu consultório. Acontece que minha vida anda meio agitada: provas, trabalhos, exercícios, textos a escrever, livros a ler, jogos a jogar, filmes a assistir e tempo para nada. Às vezes preciso até estar duas vezes no mesmo lugar, como quando o professor de Circuitos Digitais acaba a aula às 18:35 e precisamente às 18:30 eu preciso estar em Geometria Analítica, a alguns prédios dali. Meus amigos me aconselharam a vir falar com você, desabafar um pouco, falar sobre meus sentimentos. Você sabe que eu não sou de ferro, Doutor, e é por isso que você existe.
Pra você ter uma idéia da situação, há duas semanas eu não tenho um verdadeiro fim-de-semana. Passei o último na casa de um colega em Santa Maria, fazendo um trabalho sobre os periféricos de um computador e jogando um jogo online qualquer, esperando ansiosamente o fim do domingo para que eu pudesse assistir Fantástico com a minha avó, a única coisa que me faz esquecer que eu sou um ser pensante, um universitário, e me dá o gostinho de uma vida comum. Meu ônibus saía às 19:15 de Santa Maria em direção a São João do Polêsine, a metrópole na qual resido agora. Calma, guarde essa seringa, não vou falar de ônibus, sei que você já está cansado disso. Saí às 18:30 da casa do meu amigo, em direção à parada do ônibus que me levaria para a rodoviária. Olhei para o céu, desconfortantemente preto, e lembrei de um livro que meu pai escreveu enquanto fazia estágio no planetário da mesma universidade em que estudo agora: "O céu de Santa Maria em setembro de 79", ou algo assim. Agora lá estava eu, a contemplar o mesmo cenário e a me perguntar como alguém poderia escrever um livro de astronomia sobre aquele céu sem estrelas.
Cheguei na parada de ônibus, onde as pessoas aguardavam encolhidas e o vento gritava e cortava, violento. Um corpo feminino, alto e bonito, esperava tamborilando os saltos do sapato no chão. Tinha belas nádegas e três grandes volumes na frente, um dos quais no meio das pernas. Me afastei e fiquei escorado em uma parede aí perto. Eu nunca vira um corpo feminino detentor de três volumes frontais àquela hora, 18:30, no começo da noite. Estranho, Doutor.
Em um banco ao meu lado, uma mulher gorda começou a conversar. Gesticulava de um modo forte, em movimentos circulares, enquanto falava palavras incompreensíveis para mim. Olhei para o espaço à sua frente e deduzi que ela estava conversando com o ar que, gélido e frio, continuava assobiando. Coloquei minhas luvas e cheguei mais perto para escutar a conversa.
— O Renan não dórmi di noiti, fica fuque fuque fuque na cama, fuque fuque, a língua mnhmw nhuwmmm não dórmi, fuque fuque, se não quiser mnhuwm fica fuque fuque assim ó... – e fez mais gestos circulares com a mão, de vez em quando parando e apontando para o chão.
Voltei para meu encosto. Inalei a fumaça do cigarro de um velho branco de dentes pretos e dedos amarelos, que tentava em vão soprar o vento frio para longe. "O que aquela mulher tem?", pensei.
— Procura no Google. – ouvi de relance em um grupinho de três garotos com celulares modernéticos que falavam sobre as funcionalidades dos modelos de cada um.
Olhei para o fim da rua, nada do ônibus. Olhei para o céu sem estrelas de Santa Maria. Dei mais uma tragada passiva no cigarro do velho e aguardei sileciosamente, enquanto uma mulher bem vestida e seu filho acomodavam-se na parada. O garotinho, vestido em um terno branco impecável, dava pulos para espantar o vento frio, que parecia incomodado de ter que ceder lugar para os dois. A mãe, visivelmente receosa, aquietava o filho e olhava nervosamente para o fim da rua. O velho olhou para a criança, a criança sorriu e a mãe puxou-a mais para perto. O velho tornou a olhar para o vazio e a me oferecer seu cigarro, insistente.
— Fuque fuque fuque...
Uma luz apareceu ao longe, e outra e mais outra. Diversos ônibus pararam à parada, mas nenhum levava à rodoviária. Duas senhoras fofoqueiras, juntamente com o grupinho de jovens que agora riam dos fuque fuques da mulher gorda, entraram em seus respectivos transportes e acomodaram-se. Próclise, Doutor? Do que o senhor está falando? A mãe puxou o filho para o ônibus quentinho do fim da fila e em seu rosto tornou-se visível um sinal de alívio. No meu não.
A mulher gorda foi embora a pé, passando por um velho baixinho que chegava apoiado em uma bengala. Tinha ares de barão, e olhou para o nada de um modo severo, como se mandasse o vento parar de assobiar em sua presença.
— Wnhmmmn né? Fuque então mwmnhum o Renan, não dórmi não dórmi. – ouviu-se ao longe.
Mais uma luz despontou no horizonte. O velho com jeito de senhor do engenho chegou mais perto da sarjeta, como se não fosse sair enquanto o ônibus não pedisse licença. E lá estava, em letras garrafais, RODOVIARIA. Tive certeza de ouvir o vento soprar um "já vai?" no meu ouvido. Dei uma última estremecida e subi.
Quer saber, Doutor? Não importa quantos trabalhos eu tenha que fazer e para quantas provas eu tenha que estudar. Da próxima vez fico em casa assistindo a um relaxante filme de terror, ao invés de sair para as amedrontadoras ruas sob o céu sem estrelas de Santa Maria.
Pra você ter uma idéia da situação, há duas semanas eu não tenho um verdadeiro fim-de-semana. Passei o último na casa de um colega em Santa Maria, fazendo um trabalho sobre os periféricos de um computador e jogando um jogo online qualquer, esperando ansiosamente o fim do domingo para que eu pudesse assistir Fantástico com a minha avó, a única coisa que me faz esquecer que eu sou um ser pensante, um universitário, e me dá o gostinho de uma vida comum. Meu ônibus saía às 19:15 de Santa Maria em direção a São João do Polêsine, a metrópole na qual resido agora. Calma, guarde essa seringa, não vou falar de ônibus, sei que você já está cansado disso. Saí às 18:30 da casa do meu amigo, em direção à parada do ônibus que me levaria para a rodoviária. Olhei para o céu, desconfortantemente preto, e lembrei de um livro que meu pai escreveu enquanto fazia estágio no planetário da mesma universidade em que estudo agora: "O céu de Santa Maria em setembro de 79", ou algo assim. Agora lá estava eu, a contemplar o mesmo cenário e a me perguntar como alguém poderia escrever um livro de astronomia sobre aquele céu sem estrelas.
Cheguei na parada de ônibus, onde as pessoas aguardavam encolhidas e o vento gritava e cortava, violento. Um corpo feminino, alto e bonito, esperava tamborilando os saltos do sapato no chão. Tinha belas nádegas e três grandes volumes na frente, um dos quais no meio das pernas. Me afastei e fiquei escorado em uma parede aí perto. Eu nunca vira um corpo feminino detentor de três volumes frontais àquela hora, 18:30, no começo da noite. Estranho, Doutor.
Em um banco ao meu lado, uma mulher gorda começou a conversar. Gesticulava de um modo forte, em movimentos circulares, enquanto falava palavras incompreensíveis para mim. Olhei para o espaço à sua frente e deduzi que ela estava conversando com o ar que, gélido e frio, continuava assobiando. Coloquei minhas luvas e cheguei mais perto para escutar a conversa.
— O Renan não dórmi di noiti, fica fuque fuque fuque na cama, fuque fuque, a língua mnhmw nhuwmmm não dórmi, fuque fuque, se não quiser mnhuwm fica fuque fuque assim ó... – e fez mais gestos circulares com a mão, de vez em quando parando e apontando para o chão.
Voltei para meu encosto. Inalei a fumaça do cigarro de um velho branco de dentes pretos e dedos amarelos, que tentava em vão soprar o vento frio para longe. "O que aquela mulher tem?", pensei.
— Procura no Google. – ouvi de relance em um grupinho de três garotos com celulares modernéticos que falavam sobre as funcionalidades dos modelos de cada um.
Olhei para o fim da rua, nada do ônibus. Olhei para o céu sem estrelas de Santa Maria. Dei mais uma tragada passiva no cigarro do velho e aguardei sileciosamente, enquanto uma mulher bem vestida e seu filho acomodavam-se na parada. O garotinho, vestido em um terno branco impecável, dava pulos para espantar o vento frio, que parecia incomodado de ter que ceder lugar para os dois. A mãe, visivelmente receosa, aquietava o filho e olhava nervosamente para o fim da rua. O velho olhou para a criança, a criança sorriu e a mãe puxou-a mais para perto. O velho tornou a olhar para o vazio e a me oferecer seu cigarro, insistente.
— Fuque fuque fuque...
Uma luz apareceu ao longe, e outra e mais outra. Diversos ônibus pararam à parada, mas nenhum levava à rodoviária. Duas senhoras fofoqueiras, juntamente com o grupinho de jovens que agora riam dos fuque fuques da mulher gorda, entraram em seus respectivos transportes e acomodaram-se. Próclise, Doutor? Do que o senhor está falando? A mãe puxou o filho para o ônibus quentinho do fim da fila e em seu rosto tornou-se visível um sinal de alívio. No meu não.
A mulher gorda foi embora a pé, passando por um velho baixinho que chegava apoiado em uma bengala. Tinha ares de barão, e olhou para o nada de um modo severo, como se mandasse o vento parar de assobiar em sua presença.
— Wnhmmmn né? Fuque então mwmnhum o Renan, não dórmi não dórmi. – ouviu-se ao longe.
Mais uma luz despontou no horizonte. O velho com jeito de senhor do engenho chegou mais perto da sarjeta, como se não fosse sair enquanto o ônibus não pedisse licença. E lá estava, em letras garrafais, RODOVIARIA. Tive certeza de ouvir o vento soprar um "já vai?" no meu ouvido. Dei uma última estremecida e subi.
Quer saber, Doutor? Não importa quantos trabalhos eu tenha que fazer e para quantas provas eu tenha que estudar. Da próxima vez fico em casa assistindo a um relaxante filme de terror, ao invés de sair para as amedrontadoras ruas sob o céu sem estrelas de Santa Maria.
Marcadores: a